Voices cs431

 

 

 

 

 

 

 

 

Decerto todos conhecerão os discos em que Keith Jarrett troca o piano (ou o cravo e o órgão de igreja) por outros instrumentos, e designadamente aqueles “pequenos” (flautas de bisel, percussões) que, pelas suas próprias características, afastam qualquer eventual abordagem virtuosística e exploratória, focando os ouvidos na própria musicalidade das situações e em outros factores (inclusive a nível de “exotismo” tímbrico) que não aqueles a que nos habituou. O saxofonista Paulo Alexandre Jorge tem feito o seu percurso em grupos por si liderados ou em outros que o integram nos moldes do free jazz ou da free improv, numa abordagem de particular intensidade que o coloca no legado saxofonístico de um Archie Shepp, mas também ele sente a necessidade de explorar outros caminhos. “Voices” resulta desse desejo, numa situação a solo em que o encontramos a utilizar outras ferramentas que não as de sempre – além dos saxes tenor e soprano, ouvimo-lo aqui em bateria, flauta indonésia, guitarra, contrabaixo e voz.
Resulta também de alguma forma, este disco, do trabalho que o músico do Porto vem desenvolvendo no âmbito do teatro, um trabalho que, mais do que musical, é performativo: há algo de cénico, porque com o cometimento de uma “colocação em cena”, nas duas longas peças reunidas. O próprio título define a voz (a propriamente dita e as instrumentais) como expressão de uma dramaturgia sem palavras, se bem que alguns versos sejam apresentados como mote no interior da capa, como “Consigo correr uma hora sem parar, do / princípio ao fim do mundo e voltar, / sem parar”. Este factor performativo tem características coincidentes com o “teatro da crueldade” de Antonin Artaud, privilegiando aspectos como o primarismo das emoções, entregues por meio de um “stream-of-consciousness” de livres associações, quando não mesmo resvalando para episódios dissociativos, e por um certo ritualismo, reminiscente do das músicas tribais, mas sem a conexão étnica e espiritual destas. Um CD deveras curioso de um livre-criador que é mais do que aquilo que ouvimos com a Free Jazz Company ou com o free rock do Equinox Quartet. Rui Eduardo Paes (Jazz.pt)